Insensibilidade
Ali estava Jó, moído, quebrado
Amargando o inesperado luto
De todos os seus filhos e filhas
Despedaçado espiritualmente
Falido financeiramente
Cheio de contas para pagar
E sem um tostão no bolso
Não bastasse isso, a sua saúde
Tinha piorado e a doença tomou
Conta do seu corpo inteiro
Deixando-o em carne viva
Cheio de dores, coceiras e pruridos
Abandonado pelos parentes
Esquecido pelos amigos
E tripudiado por antigos invejosos
O sono lhe faltava e as dúvidas sobravam
Todavia, miséria pouca é bobagem
Vindo lá de onde Judas perdeu as
botas
Eis que surge diante dele, os seus autointitulados
Melhores – e mais sábios e mais santos – amigos
A visão da decadência de Jó
Por um brevíssimo momento
Tirou a fala deles. Ficaram sem palavras
Diante de tanta dor, engoliram as
palavras
Mas por pouco tempo, por pouco tempo
Eram religiosos demais para conterem
As suas sábias e bem-aventuradas
palavras
Inquisidores natos, notaram alguma hipocrisia escondida
Sob as feridas, catingas, pruridos e falas de Jó
Além disso, claro, Jó era uma oportunidade imperdível
Para demonstrar a verdade da teologia
deles
Então, ao invés de estender as mãos
ao sofredor
Arrumar uns remédios, preparar uns
curativos
Esquentar água para um banho
Preparar uma cama e vigiar o sono do
amigo
Os infelizes partiram para a argumentação
teológica
Homens saudáveis e bem alimentados,
sem uma ferida no corpo
Argumentando contra um homem confuso,
cheio de dor e luto
Doente, fétido, humilhado, acabado e
vencido
Que quadro patético! Que cena comum.
Ainda hoje, vezes sem conta, diante
da dor do outro
A pessoa acha muito mais fácil acusar do
que estender a mão
O doente vira um púlpito de carne
viva
E os amigos sobem em cima e tripudiam
Pregam, cantam louvores
Leem passagens da Bíblia
Ensaiam
aulas de teologia
Citam exemplos
Apontam consequências
E partem para o corpo a corpo
Ressuscitam mortos antigos
Falam dos pecados passados
Expulsam demônios hereditários
Quebram maldições
Realizam um culto de tolices
Sobre o corpo e a alma do moribundo
Apontam pecado em cima de pecado
Reclamam arrependimentos e sacrifícios
Prometem cura, saúde e muito mais
Desde que participe dessa ou daquela campanha
Enganam o coração e confundem a
cabeça das pessoas
Fazem promessas e propõem estranhas barganhas
E como nem todo mundo tem a firmeza
de um Jó
A fila dos iludidos só faz crescer,
crescer e crescer...
Depois do ritual, felizes da vida,
pois fizeram a obra de Deus
Vão para as suas casas, curtirem a
sua santidade e verdade
Já vi isso acontecer mil vezes, ou mais, muito mais
E no fim de tudo, o moribundo fica com aquele sorriso amarelo
Confuso, envergonhando e preso a mil promessas que fez
Meu Deus! Seria tão mais simples dar
um abraço
Tão mais simples ficar ao lado, consolando
Mas não, é preciso fazer sermão e cumprir
o ritual da vaidade
E fazer uma selfie, postar no facebook
e dizer que visitou
É, certas coisas, ou melhor, certos
amigos, nunca mudam...
Jesus! Tenho medo de ficar doente de
repente
Aquele monte de gente rodeando a
minha cama
Falando pelas minhas costas, falando
dos meus pecados
Bancando o santo em cima das minhas
desgraças
Acho que morro antes do tempo, se
isso acontecer
Verdade mesmo, prefiro injeção
na testa
A me ver permanentemente rodeado por
amigos de Jó
Ah, aviso logo e falo sério, doente ou não:
Detesto selfie... Então, nem vem que não tem. É isso.
_VBMello